Pequenas alegrias

Era um prédio moderno, mármores, aços, vidros, varandas bojudas, cores de amendoa da Páscoa. As caixas de correio ficam no exterior, portinholas frágeis em folha de aluminio com uma abertura larga o bastante para caber a minha mão até ao pulso. Algumas têm a fechadura lassa, quase solta, outras estão mesmo danificadas e sem préstimo para o fim a que se destinam. Não sei o que me chamou a atenção para o interior de uma dessas caixas. Li o nº, ap.3-3º. Provavelmente foi a repetição do nº 3, este algarismo parece perseguir a minha vida... Olhei: algum pó, uma carta das finanças, outra de envelope vermelho. Agarrei este e instintivamente aproximei-o do nariz. Cheirava bem. Estava escrito à mão, uma letra reboluda a negro, vinha de alguém que se identificava apenas com iniciais. Devía de ser de uma mulher. E era para o homem do ap.3-3º. Uma amante. Quando escreveu aquela carta, e a dobrou, e depois a enfiou no sobrescrito, fechou os olhos quando passou a lingua naquele filete de cola. Mas o homem do ap.3-3º é casado. E a mulher vai achar o envelope vermelho antes dele chegar a casa e ele, louco de amor pela amante e louco de ira pela mulher metediça vai cometer um crime. Assim, para evitar tudo isto e mais uma manchete nos jornais cor-de-rosa, enfiei a carta no ap.2-1º. E depois retirei toda a correspondência das outras caixas de correio, as de porta franqueada e as fechadas, que eu magra e ágil, devassei pela mão à pesca de outros envelopes, e destes dei cartas como se fossem um baralho de jogar, misturando os destinatários. Naquele dia, proporcionei algumas alegrias aos menos atentos no endereço, evitei uma morte, até duas se calhar, ou mesmo três se contar com a amante descoberta. A quem ficou com as cartas de cobrança em sorte: há sempre um preço a pagar por tudo, até pelas pequenas felicidades de estranhos.

Principio

Tudo começou quando levei a nega numa entrevista de emprego. Depois de ter passado pelas várias etapas até à selecção final e termos restado 3 da multidão que havía concorrido, recebi um sms a agradecer a minha disponibilidade mas que o meu perfil não era o adequado. Passei-me: primeiro tive cólicas, depois senti cólera e de seguida desatei num pranto. Recompus-me, ajeitei a cara e fiz-me ao sitio do tal empregozinho. Ficaram surpreendidos com a minha presença. Exigi ser recebida pela fulana dos recursos humanos mas negaram-me tal direito. Sentei-me e disse que não abalava dali sem falar com ela. Chamaram a segurança do edificio. Agarrei-me à mala e fiz força com os pés, dali eu não arrancava. Agarraram-me por um braço e arrastaram-me, e eu segurei-me à cadeira e trouxe-a comigo. Gritei, berrei, apareceram várias cabeças a espreitar. Mandaram-me calar e ainda mais alto gritei. A psicóloga do departamento de recursos humanos lá deu as caras e eu calei-me. Perguntei-lhe porquê: porque (disse muito baixinho) queríam alguém com menos criatividade, o lugar era puramente admnistrativo. Saí. Neste momento distribuo publicidade por caixas de correio. Mesmo naquelas que têm a etiqueta a dizer publicidade aqui não. É por isso que aqui estou, para contar verdades como histórias de escrever. Para misturar a fantasia com a necessidade e o real com a mentira. Vai dar tudo no mesmo.