O 1º dia

Ontem foi o 1º dia no meu novo emprego. De trabalho pouco fiz, mas de aprender, ou melhor, de andar atrás da senhora de fatinho preto, levei o dia inteiro. Isso e de bandeja na mão  a servir cafézinhos, coisa que diga-se, não tenho jeito nenhum. Entornei várias vezes as chávenas, as mãos tremem-me muito e atrapalho-me a bater à porta, abrir a porta e carregar com os cafés, tudo ao mesmo tempo. Disseram-me que é uma questão de prática, que daqui a uns dias estou uma profissional. Mas a verdade é que não me interessa nada andar a servir cafés ou então tería seguido para o ramo da restauração, coisa que não sou vocacionada. Estive sempre stressada e em alerta, nunca relaxei e acho que de tanta tensão nem sequer consegui fixar metade do que ouvi. As pastas de arquivo foram outra complicação. Não consegui perceber porque razão arquivam se têm os documentos digitalizados. É como fazer o trabalho duas vezes! Mas como sou nova, fiquei calada e a remoer. Na verdade devería sentir-me abençoada por ter emprego, mas não me apetece nada voltar lá a pôr os pés, por isso suponho que estes pensamentos fazem de mim uma ingrata.

 

O escritório

Cheguei nervosa, a suar e a tremer de frio, com dores de barriga e a boca seca. Tive mais medo de envergonhar a minha senhoria do que propriamente por mim. Mal eu sabía ao que ía. O sitio é luxuoso ou não fosse um gabinete de advocacia no centro da cidade. Ou seja, mais um sitio que nada tem que ver com a minha licenciatura. Deixaram-se à espera mais de meia-hora, o que me deixou ainda mais ansiosa e me trouxe lembranças daquela entrevista que acabou muito mal. Depois fui encaminhada por uma secretária que parecía estar espartilhada dentro de um fatinho preto, muito direita, para a sala do senhor Dr. qualquer coisa. Foi afável, sorridente, tratou-me pelo nome, terminava as frases sempre com o meu nome, 5 minutos de conversa, seja bemvinda a bordo, o meu nome e estou despachada, e lá voltei para a secretária do fatinho preto. Foi ela que acertou tudo comigo: Horários, ordenado e as minhas funções. Servir cafés, tirar fotocópias, arquivo, fazer recados, o mais se vería. Nada de calçado desportivo nem calças de ganga, nada de piercings nem tatuagens à vista, saias e vestidos até ao joelho e nada mais curto que isso, costas à mostra nem pensar,  há um dresscode a cumprir. Começar na próxima semana. Não sei o que diga, não sei o que sinta.
 
 

Cunhas

A minha senhoria esticou a mão e deu-me um papelinho com um nº de telemóvel. Disse que era de um Dr. qualquer coisa que eu não percebi o nome, marido de uma amiga de uma amiga sua de longa data. Uma confusão. Não entendi e na verdade não estava muito ligada à conversa, só olhava para o papelinho e não percebía que tinha eu a ver com aquela história toda. Era para ligar e combinar uma entrevista. Fiquei atordoada. Tão atordoada que nem falava. A minha senhoria tinha os seus contactos. Tinha falado da sua sobrinha. Eu. E estando eu necessitada de trabalhar e o Dr. qualquer coisa precisado de uma secretária competente, estavam reunidas as condições ideais para um emprego garantido. Foi quando eu me assustei e falei que não era secretária, nem experiência disso tinha, que podía deixar a minha senhoria envergonhada. Mas ela sorriu e disse que confiava na minha inteligência e na minha esperteza. Eu agradeci, um pouco envergonhada por causa do pedido, se não fosse a cunha continuaría à espera de melhores dias ou seja, de nada. Ela zangou-se. Cunha, que palavrão! Dar uma ajuda ao destino.
 
 

Decisões

Sempre fiz o que me mandaram. Até mesmo contrariada. Cumpría e sem má cara e sem argumentar, fechada num mundo só meu sem me perguntar se era justo ou não, só sabía que era para fazer e quanto mais rápido acabasse com aquilo mais depressa terminava a pena. Quando fui recusada naquela célebre entrevista qualquer coisa mudou dentro de mim. Parece que um botão foi ligado e eu mesma não consigo explicar o porquê e porquê naquele dia, só sei que me fartei e não consigo mais ouvir e calar quando não gosto ou não quero, sem dizer o que penso. Por isso, decidi que não vou mesmo aceitar esta oferta de emprego para o contact center. Não vou violentar-me. Tenho falta de dinheiro e o mercado de trabalho está péssimo, mas não sou aleijada nem estúpida e as minhas qualificações de certeza, darão para outras coisas. Como diz a minha senhoria, nem que seja para lavar escadas. Não gostava de chegar aí. Mas confesso que prefiro andar de joelhos a fazê-lo do que ir para um sitio que me põe de rastos.

 

Cada bola mata um

Ando a dormir muito mal. Eu que sempre dormi em cima de um monte de pedras! Mas estas noites infernais têm uma razão: finalmente recebi uma resposta de emprego e está a dar comigo em doida. É novamente de um contact center. Logo o que não quería, exactamente o que eu tinha prometido a mim própria que não havería de voltar a fazer. E agora? Preciso de dinheiro mas não quero violentar-me da mesma maneira como da outra vez... Não sei o que faça. Parece que ando em circulos e volto ao mesmo ponto, ou seja às minhas costas. Está dificil. Está dificil ser positiva sem dinheiro e a ter que ir trabalhar numa coisa que detesto. Apetece-me fazer pim-pam-pum cada bola mata um e deixar que a sorte decida o meu azar.

 
 

Borregar

O dinheiro a ir e eu sem fazer nada. Porque não tenho como. Já fiz tudo o que estava nas minhas mãos: enviei os cv, estou inscrita no fundo de desemprego, tenho visto os jornais e online, ligo para amigos e amigos dos amigos. Não tenho retorno. Só me resta esperar. Enquanto isso é ficar a pasmar aqui por casa ou seja a borregar. A minha tia-senhoria tem-me entretido com longas histórias do tempo dela. Não é que me aborreça, antes pelo contrário, mas a minha impaciência e ansiedade estão em alta e metade do que me diz passa-me um bocadinho ao lado. Infortúnio meu, que se tomasse realmente atenção ficava com material para escrever no futuro, mas simplesmente é uma coisa orgânica e que não comando, quando me apercebo lá estou eu mentalmente a fazer contas aos dias que já passaram sem emprego e ao dinheiro que ainda tenho...

 

Nenhures

Estava-se bem no meu quarto mas já não se estava tão bem-bem na minha terra. Verdade, verdade, é que me senti um pouco desajustada. E até sinto um pouco de vergonha ao confessar que muito da conversa que tive com antigas amizades me passou um bocadinho ao largo, simplesmente porque aquela já não é a minha vida. Eu não estou nada interessada nos rapazes da aldeia ao lado e dos namoros dos outros e quem esteve presente na missa de Domingo. Ah pois é! Que tive de ir à missa de Domingo ou a minha mãe ía ser falada para o resto do mês. Que seja e lá fui a fingir que me encaixava. A seguir ao almoço apanhei o combóio e regressei. Carregada que nem uma mula de transporte. Que os meus pais acham que eu passo fome, e então mandaram-me a despensa para seis meses, mais uma bôla de carnes e um presuntinho para a senhoria, para ela me tratar bem, palavras deles. E pronto, agora que já cá estou de novo, já tenho saudades outra vez. Na minha terra, quando se pergunta a alguém onde vai e esse alguém não quer responder, diz Nenhures. Mas para mim, hoje e agora, Nenhures, é estar aqui e lá ao mesmo tempo, que era mesmo o que eu gostava. E talvez não o dissesse se mo perguntassem...

 

O galo

Explicar aos meus pais que se viraram do avesso para me pagarem um curso superior, que eu cumpri, que me tornei doutora como eles dizem à vizinhança, e que estou sem emprego porque fui despedida porque é a forma como entendem o termo de um contrato, é dose. Esta não é a maneira como eu tinha imaginado a recepção da minha pessoa no regresso às origens, em definitivo! Se eles estão decepcionados eu também estou. Voltar a casa após tanto tempo sem cá vir, é doloroso. Primeiro, pelas saudades que tinha de tudo isto, do meu quarto, dos meus pais, do verde à volta como não há mais nenhum. Depois, porque só me apercebi deste aperto quando aqui cheguei e os abracei e senti a falta que tinha de todas estas pequenas coisas que durante anos me saturaram. E finalmente, pela desilusão que lhes causei, tanto mais que eu não fui agente no desenrolar do processo, sendo a principal vitima do mesmo. Mas há coisas boas. Despertar ainda noite pelo grito do galo, conferir a exactidão das horas no telemóvel e saber que todas as madrugadas se esganiça pontualmente sem falhar. Aconchego-me na minha cama e sinto-me segura, tão segura e tranquila, que sou pequenina outra vez.