Doente com o cú quente

Nunca fui de chiliques, depressões, fraquezas de espirito. Na minha terra e na minha família não havia tempo para esse tipo de coisas. Se algo estava mal, consertava-se e andava-se para a frente. Não sei o que me deu, mas seja lá o que tenha sido, a minha senhoria viu e tratou, deu-me o remédio, mandou-me a casa e resolveu a questão. Parti numa sexta-feira depois do dia de trabalho e graças a uma mentira da minha tia emprestada que ligou para o escritório a dizer que eu tinha passado mal a noite, ainda consegui a segunda de bónus, regressando nesse dia ao final, um risco que me deu algumas dores de barriga, mas pronto, já está. Os meus pais quando me viram à porta ficaram surpreendidos e a primeira pergunta foi se eu tinha sido despedida. Mas que linda recepção! Não, estou doente, vim a casa para me tratar, respondi. Mas a seguir desatei a rir e claro que a minha mãe disse o que sempre dizia quando eu era garota, doente com o cú quente, que é como quem diz, queres ficar na palha sem fazeres nenhum. Que interessa? Mesmo que eu conseguisse explicar (que não consigo nem a mim) eles não iriam entender a razão de eu estar ali com eles, a necessidades de os ver, de sentir o cheiro de casa, os lençóis da minha cama, o terreno lavrado nas traseiras com as couves empinadas, o galo a esganiçar-se quando toda a gente dorme na cidade. Tudo aquilo me fazia falta, fazer-me sentir parte de alguma coisa minha. Os meus castelos andam a desmoronar-se ao contrário de se erguerem, nunca poderei explicar isto a quem é da terra.
 

O toque de uma mão

Não sei se é do calor, se foi da história do jardineiro, mas não me ando a sentir nada bem. Ando muito cansada e todos os dias para me levantar é um frete. Tudo me parece um custo e nada me merece a pena. Vou trabalhar já a olhar para o relógio e a fazer o cálculo a quanto tempo falta para me libertar daquilo tudo, da roupa, dos sapatos, do tormento de me enfiar no metro a abarrotar e regressar ao meu quarto. O J tem-me desafiado para saírmos e conversar mas não me apetece falar. Não me apetece abrir a boca. Não porque não tenha o que dizer, simplesmente não sei por onde começar, ou simplesmente porque se começar tudo vai saber a queixinhas e lamúrias e pressinto que vou caír num pranto sem fim. Ninguém tem que aturar este tipo de coisas, nem mesmo os amigos, nem o J, era o que faltava, saírmos para levar com uma chorona. A minha senhoria pediu-me ontem, depois do jantar, que eu ficasse sentada com ela à mesa. Trouxe um bolo de canela feito por ela. Partiu duas fatias e começou a falar. Que eu devía ir a casa. Não tenho férias, só depois de 6 meses do contrato, uns dias. Não, agora, num fim-de-semana, que se o dinheiro é o problema me empresta. E pôs a mão dela sobre a minha. Não sei que me deu, rompi a chorar que nem uma parva. Levantou-se, veio por detrás de mim e entrançou-me o cabelo, dizendo que me ajudava a fazer o saco para a viagem.
 

O jardineiro

Há factos da vida por serem tão fantásticos, parecem cenas de filme e a que vou contar é uma delas. Esta semana apareceu no escritório um rapaz que já aqui trabalhou. Toda a gente lhe fez uma grande recepção, incluindo o Dr.. Grandes abraços, muitos beijos, beijinhos, apertos de mão, uma festa. Mas quem é esta figurinha, pensei eu. Esta figura é o antecessor do meu colega que anda na rua, nas Conservatórias, nos Bancos. Ao que me contaram, não era lá grande coisa como funcionário. Chegava tarde, esquecia as tarefas, documentos, perdía papéis e no final do 2º contrato, foi para o olho da rua. Ou melhor, comprou um bilhete de avião para a Holanda e foi de férias. Estou a ver o estilo, disse eu para comigo. Mas enganei-me, que isto de ver a embalagem nada tem com o carácter. O rapaz tem pinta de artista, mas cabeça não lhe falta, e sorte, muita sorte, porque aficionado por floricultura, dedicou-se a tratar do jardim de uns ricaços lá pelo País dos tamancos. Como? Insinuou-se, isso mesmo. Foi daqui sem cunhas, foi de férias como já referi, viu o jardim, entrou, analisou as flores e fez uma proposta ao dono da casa, tratou de tudo e no final apresentou um resultado surpreendente. De tal forma que o senhor recomendou o seu trabalho a outro, e este a outro e por aí fora, e vai daí o rapaz pediu um subsidio ao fundo comunitário que lho concedeu, abriu uma empresa e hoje é um requisitado jardineiro na Holanda. Tudo isto em 3 anos. Fiquei a sonhar. Fiquei feliz e depois tão deprimida, mas tão deprimida que me fartei de chorar antes de adormecer e ter um pesadelo horrível com tulipas gigantes a engolirem-me.