Pequenas alegrias

Era um prédio moderno, mármores, aços, vidros, varandas bojudas, cores de amendoa da Páscoa. As caixas de correio ficam no exterior, portinholas frágeis em folha de aluminio com uma abertura larga o bastante para caber a minha mão até ao pulso. Algumas têm a fechadura lassa, quase solta, outras estão mesmo danificadas e sem préstimo para o fim a que se destinam. Não sei o que me chamou a atenção para o interior de uma dessas caixas. Li o nº, ap.3-3º. Provavelmente foi a repetição do nº 3, este algarismo parece perseguir a minha vida... Olhei: algum pó, uma carta das finanças, outra de envelope vermelho. Agarrei este e instintivamente aproximei-o do nariz. Cheirava bem. Estava escrito à mão, uma letra reboluda a negro, vinha de alguém que se identificava apenas com iniciais. Devía de ser de uma mulher. E era para o homem do ap.3-3º. Uma amante. Quando escreveu aquela carta, e a dobrou, e depois a enfiou no sobrescrito, fechou os olhos quando passou a lingua naquele filete de cola. Mas o homem do ap.3-3º é casado. E a mulher vai achar o envelope vermelho antes dele chegar a casa e ele, louco de amor pela amante e louco de ira pela mulher metediça vai cometer um crime. Assim, para evitar tudo isto e mais uma manchete nos jornais cor-de-rosa, enfiei a carta no ap.2-1º. E depois retirei toda a correspondência das outras caixas de correio, as de porta franqueada e as fechadas, que eu magra e ágil, devassei pela mão à pesca de outros envelopes, e destes dei cartas como se fossem um baralho de jogar, misturando os destinatários. Naquele dia, proporcionei algumas alegrias aos menos atentos no endereço, evitei uma morte, até duas se calhar, ou mesmo três se contar com a amante descoberta. A quem ficou com as cartas de cobrança em sorte: há sempre um preço a pagar por tudo, até pelas pequenas felicidades de estranhos.

1 comentário:

augusto, um entre mil disse...

e fizeste papel de deus que escreve a direito por linhas tortas ou o papel do diabo que faz o bem sem ver a quem pois ele não é mau como a pintam...
faz diabices que foi o que tu fizeste...