Malas feitas

Falta pouco e a minha ansiedade é enorme. De tal forma que já fiz as malas. Parece que assim quando completar o último dia de trabalho as coisas andam mais depressa e eu chego mais rápido a casa. E casa aqui, é a das minhas origens, o sitio onde nasci, onde estão os meus pais à minha espera. Sabe-me bem pensar isto, estarem à minha espera. Aqui ninguém espera por mim, ninguém sabe de mim, ninguém procura por mim. Só a minha senhoria, mas não é a mesma coisa. Ter as malas prontas para ir dá-me uma sensação de ser benvinda, ter braços abertos para me receberem. Acho que me estou a tornar lamechas. A cidade tornou-me insensível e sensível. Dois lados opostos que só vieram à superfície quando houve necessidade de eu ter uma mala para partir e regressar.
 
 

Esfolar o rabo

Últimos dias. E nunca me custou tanto. Tem sido um tormento ir para aquele purgatório. Parece que me tem calhado os clientes mais dificeis, e os colegas tem-me feito a vida negra. Ou então sou eu que já não vejo aquilo com bons olhos e tudo me parece custoso. Espero ansiosamente o último dia para bater com a porta e nunca mais na vida me meter numa coisa daquelas. Mas que sei eu? Nunca digas desta água não beberei, pois posso muito bem ir lá voltar a bater com os costados, ou a coisa semelhante. Não posso é ficar desempregada, isso não. Tenho-me lembrado muito do que a minha mãe diz quando mata a criação, especialmente os coelhos. Que o que custa mais é esfolar o rabo. Depois de se lhes retirar a pelagem, quando se chega à parte final, já se está cansado e farto da tarefa e ainda resta aquele coto para esfolar. A mim, falta-me este rabo. Não há meio de lá chegar e arrancar-lhe o pêlo de vez. Que saturação!
 
 

Com a graça de Deus

A falta de perspectivas na minha vida obriga-me a dar conta da dita mais do que eu quero e gosto. Logicamente, tive que por a minha senhoria a par da minha situação, já que estando a minha economia em estado periclitante, a dela consequentemente, poderá vir a agravar-se. Não sei se não terei que ir procurar asilo para outro lado, embora a idéia não me agrade, não a posso afastar. Ela fez chá, bolinhos e lanchámos. Eu cada vez mais atrapalhada e a sentir que me ía engasgar. Será que ela percebeu, que eu lhe disse que muito provavelmente, terei de me ir embora e ela terá de encontrar outra hóspede?! Percebeu. Mas com a graça de Deus, tudo se vai arranjar, respondeu ela. Vai rezar muito por mim, que tem muita fé, e eu mereço. E ía dando palmadinhas na minha mão à medida que me dizía estas coisas. Ora eu não sou nada disto. Quer dizer, sou baptizada, fiz a primeira comunhão, a comunhão solene e os meus pais até queríam que eu seguisse para a crisma, mas por essas alturas eu estava espigada, e os estudos ocupavam-me o tempo e serviram de adiamento ao que não me interessava. Não quero saber de religiões. Mas a minha senhoria, com a graça de Deus, diz-me que posso ficar, a casa é minha, não quer mais ninguém, e tudo vai dar certo para mim, ainda vou ter um grande futuro. Ámen!
 
 

Não desejes muito que pode acontecer

Acabaram-se as dúvidas existenciais: no fim do mês vou engrossar o número dos desempregados. Tanto pensei no assunto, tanto no íntimo desejei que acontecesse que me fizeram a vontade. Tudo dentro da lei. Fui chamada para comunicarem que já não precisavam mais dos meus serviços, que agradecíam muito, e toma lá o envelope com a notificação e põe-te a milhas. Verdade, verdadinha, sinto-me leve, uma tonelada saíu de cima dos meus ombros, foi um tempo horrível a fazer uma coisa que detestei entre pessoas com quem nunca criei nenhuma empatia. Agora acabou. E o ordenado também. E isso assusta-me. Voltar tudo ao principio, procurar, ir a entrevistas, levar com a porta na cara, a fila para o subsidio de desemprego, falar com outros que estão ainda em pior situação que a minha, chegar a casa deprimida, uma casa que não é a minha. Mas quando o fim do mês chegar vou à minha terra, dormir no meu quarto, matar saudades dos meus pais e dos meus amigos. Tanto que ansiei por fazê-lo e agora estou à beira de o concretizar. Há que ver o lado bom das coisas. E são 2em1!!!

 

A imigrante

Enquanto não saí do lugarejo onde nasci não sosseguei. Sempre me senti deslocada, sufocada e a ansiar por vir para a capital. Lembro-me que em miúda via as imagens na televisão e dizia à minha mãe que quando crescesse havería de morar ali. E o ali, era claro, a cidade grande, cheia de confusão, carros, muita gente a circular, tudo em antagonia ao pacato e verdejante sitio onde morava e onde todos se cumprimentam porque todos se conhecem. Na verdade eu não sou diferente dos outros. Todos os jovens da minha aldeia assim que tiveram idade suficiente para o fazer, emigraram. Eu apenas escolhi fazê-lo cá dentro e com uma licenciatura, porque decidi que não me havería de sujeitar a fazer trabalhos num país estrangeiro que não fizesse no meu. E por outro lado, nunca coloquei as coisas de forma a pensar em voltar para as origens, com uma casinha restaurada e um Mercedes em 3ª mão. Mas tudo é tão relativo. Porque cada dia que passa, tenho mais saudades da minha terra e tudo me parece mais longínquo.

 

Justiças

De vez em quando encontro-me com o pessoal que trabalhou na publicidade. Estamos todos em diferentes actividades profissionais. Vamos tomar um copo, pomos a conversa em dia, rimos dos disparates antigos, contamos as parvoíces que fazemos actualmente e falamos dos nossos ódiozinhos de estimação. É uma maneira de purificar a semana e a alma. Não faz bem nem faz mal mas alivia. Foi num desses encontros que uma amiga falou de uma colega de trabalho e das dificeis relações entre elas. Do tormento que era todos os dias ir trabalhar e das intrigas que se fazíam, pondo em risco o seu emprego. Todos lamentamos. Eu falei de situações semelhantes lá pelo meu lado, mas nada que atingisse tais dimensões. A outra estava mesmo desesperada, de tal forma que desatou num pranto e confessou que pensava em despedir-se, largar tudo por já não conseguir aguentar mais a vivência com a megera que diariamente lhe sabotava o serviço. Foi então que um dos rapazes disse que se ela quisesse, ele podía tratar do assunto. Só precisava de saber quem era a outra. Ficamos todos silenciosos. Ele arranjava alguém que lhe trataría da saúde, que ela nunca mais havería de ter vontade de se meter com a nossa amiga. Esta abanava a cabeça, dizia que não, isso não, nem pensar, mas depois já não se negava tanto e já não se agitava tanto, só lhe caiam as lágrimas pela cara abaixo. Eu engoli em seco, bebi o resto da minha cerveja e resolvi por a venda da justiça e ficar ceguinha ao desfecho do assunto, vindo-me embora.
 
 

Carochinhas do Sec.XXI

O que este meu século tem de bom é que o que acontece é falado meia-dúzia de dias e não se fala mais nisso. O que o meu tempo tem de mau, é que a memória dos homens é muito curta e leva-os repetidamente a cometer os mesmos erros sem retirar nenhum ensinamento deles. Este episódio da gravidez da minha colega, de inicio chocou-me, achei o supervisor um malandro, o macho que engana a inocente virgem. Mas bem analisadas as coisas, será que não foi ao contrário? É que tenho vindo a aperceber-me que cada vez mais, os homens estão a perder o terreno em matéria de conquista no campo sentimental e a ala feminina está muito mais aguerrida, tendo passado ao ataque e até substituído os papéis quando pertencía a eles, homens, desempenharem o de cortejador. Agora são elas que declaradamente dão em cima, procuram, cercam, pressionam. Dito desta forma, não parece abonatório para o género a que pertenço, mas a realidade está aí para as provas conclusivas. E no caso em apreço, reunidos os factos, tudo leva a concluír ter-se tratado de uma premeditação, ou seja, uma gravidez planeada. Resta saber o que vai acontecer daqui a nove meses. Quer a ela, quer a ele.

 

Cenas da vida real

Pleno horário laboral, headsets, o maior paleio, em que posso ser útil, a conversa do costume, aguarde um momento e de repente uma gritaria que ficou tudo num silêncio de cortar à faca. Alguns levantaram-se, risinhos, os clientes em linha à seca e uma operadora aos guinchos de dedo apontado para um supervisor que em passos largos abandonou a sala. Uma outra supervisora bateu as palmas e mandou que retomassemos as linhas e o serviço, que estava tudo bem. A operadora foi levada por um braço, em lágrimas e aos berros. Lembrei-me da minha figura quando me negaram o emprego para a vaga de marketing e tive pena dela. Pensei que devía ter sido despedida. Depois pensei que devía ter dado uma nega a algum avanço mais ousado do supervisor, e murmurei bem-feita e senti alguma satisfação vingativa pela cena pública. Só à hora do almoço, na cantina, e com o tacho à frente é que perdi o apetite quando os boatos começaram a passar como pão que se distribui em pedaços pelos esfomeados. Grávida. Estava grávida do supervisor casado e pai de dois filhos. Não acreditei. Mas era mesmo verdade. Nesse dia, na casa de banho e para quem quisesse ouvir - e ela quería que todas a ouvissem - o supervisor havía-lhe feito juras de amor e promessas de largar um matrimónio estafado e sem salvação, só para ficar com ela, operadora jovem e bonita. Lavei os dentes mas a sensação de mau hálito não me largou o resto do dia.
 
 

O contrato

O meu contrato de trabalho, assim como o da maioria do pessoal que trabalha comigo é a termo certo. Sabemos que temos duas saídas: Ou é renovado por mais um período ou vamos para o olho da rua. Por esta altura, está a entrar uma revoada de carne fresca o que equivale a dizer que outros tantos vão embora. Não tenho ilusões, quando chegar a altura de caducar o meu contrato, uma das duas hipóteses me há-de calhar. Já vou na segunda renovação e o máximo que o pessoal aqui chegou foi à terceira, depois disso ou passam a efectivo ou é mesmo o limite. Ter a vida a prazo é tramado. Não temos como planear seja o que for, ter expectativa para alcançar ou programar fazer, porque todo o amanhã está condicionado a um passado recente que nem sequer depende muito de nós. De mim, por exemplo. Tenho feito tudo dentro das regras e isso não tem impedido ser chamada a atenção pelos supervisores, por isso vá lá saber-se o que devo fazer. Mas a verdade, cá no meu íntimo, é que desejo que este maldito contrato que assinei com o diabo, seja rasgado e eu seja mandada embora. Por mim, não tenho coragem para o fazer porque preciso do dinheiro e não posso continuar a pedir ajuda aos meus pais. Mas por outro, sentir-me-ei livre e leve, se essa decisão caír sobre mim sem vir de mim.