Os mistérios da escrita

A minha tia a fingir tem uma história de vida envolta em mistérios. Ou talvez não, talvez seja só a minha imaginação muito fértil e que já me causou muitos dissabores na mesma proporção que me leva a tirar esta brilhante conclusão. Mas não deixa de ser estranho, que uma mulher que sempre teve tudo para dar certo na vida, acabe na idade sénior, sózinha, num casarão imenso, aflita com contas para saldar e que tenha que repartir o seu espaço com estranhos para manter alguma dignidade e sustento. Que na verdade, eu sou uma estranha, ela não me conhece, e apesar do meu bom ar bem que eu a podía roubar ou até matar durante o sono. Mas o rumo da vida obriga as pessoas a confiarem no incerto e a tomarem como certo caminhos desconhecidos, o que me deixa completamente desconcertada. Na verdade, eu também tive que confiar nela e esta coisa de relações bilaterais às cegas põe-me doida, se começo a pensar muito nisso... A minha tia postiça quando tinha a minha idade nunca precisou de ser hóspede de ninguém. Nem ter sobrinhas de faz-de-conta. Sei que viveu sempre com os pais aqui nesta casa, nunca foi casada e pouco mais. Tenho muita vontade de lhe fazer perguntas. Mas também não quero desembrulhar o véu de mistério com que a envolvi.

 

Faz de conta que é uma casa

Habito numa casa que não é minha. Para ser exacta e precisa, vivo num quarto arrendado de uma casa de dimensões consideráveis, que por sua vez não é de propriedade da minha arrendatária. Ou seja, a Senhora que me alugou o quarto também paga o aluguer a um senhorio, esse sim, legal proprietário do imóvel onde ambas habitamos. É contra a lei, sim. Mas a vida é complicada e quando ela se reformou não teve outra maneira de enfrentar a crise se não esta: alugar um dos cómodos. Já lá viveram outras raparigas, há fotografias delas muito sorridentes. A minha senhoria chama-lhes as sobrinhas, as minhas sobrinhas, eu também sou uma. Finjo que vivo em casa da minha tia, é um acordo que temos. Tudo de palavra, nada no papel, nem mesmo a quantia que lhe pago religiosamente ao dia 28 de cada mês. Se lhe desse para me pôr fora não sei como ía fingir que sería uma sem-abrigo, porque sería realmente uma. Mas creio que isso não vai acontecer. Neste momento, eu sou também parte da sua subsistência.

 

(No) Swing

Já estou aqui à tempo suficiente para conhecer as regras do jogo. Sei com quem posso falar à vontade, com quem devo ter muito cuidado, quem devo contornar, evitar. E sei também que não devo fazer amizade com ninguém, é um pequeno universo cruel onde cada um faz por si e mesmo que dê a entender que está de boas comigo, na primeira oportunidade para se safar, não hesitará em me lixar para se sobressaír. Já o vi por mais de uma vez, até me pediram para ser testemunha abonatória a favor da vitimada, coisa de que me ausentei prontamente pois não quero tomar partido de ninguém. Andam todos a ver se conseguem nadar sem ir ao fundo, incluíndo eu, mas não sei até quando. E depois, há uma estranha onda de toda a ala feminina já ter andado enrolada com a masculina. E depois trocam de parceiros. E depois atiram-se aos mais novos como carne fresca, iniciando um novo ciclo. Também tentaram comigo e eu fugi a sete pés assim que me apercebi dos emails a atacarem o meu posto. No topo desta dança estão os partenaires dos supervisores, que também não fogem a um passinho. Não há condição social de casado ou solteiro que impeça o avanço a não ser o próprio a recusar. Cada vez mais sinto que vivo numa ficção. Não fora o dinheiro que preciso.
 
 

(No) Stress

Aqui a distinção entre pessoal menor e supervisores é muito mais vincado do que na distribuição de publicidade. Aqui não há misturas. Se temos necessidade de falar com o superior, primeiro temos de pedir autorização por e-mail e só depois de recebermos um lacónico ok com o timing, é que temos direito à fala. O que equivale a dizer, que muitas das vezes o timing certo já se foi, porque já não precisamos de ajuda. Mas há vezes, em que os superiores tiram o dia para se passearem entre nós, meros operadores telefónicos, deslizando como se não tivessem pés, olhando ao redor sem se dobrarem e sem fazerem nenhum comentário. Nunca há um dia certo para este acontecimento, o que nos deixa a todos enervadissimos. Qual é o objectivo? Não sei. Nas avaliações e escutas periódicas que são regulamento da empresa, para aferição do bom desempenho do colaborador (palavras do supervisor) nunca trouxeram este desfile da parada à conversa. Mas tenho para mim, que a intenção é mesmo pôr-nos sob pressão para ver se quebramos.
 
 

As verdades

Passo os meus dias sob lampadas que me dão uma excelente luz artificial e tenho ar condicionado que me impõe um casaco de malha desde que aqui entrei. Não sei se é dia ou noite, até que chega a hora de picar o ponto e saír. Tenho vezes que dou comigo, no caminho para casa, a sentir-me como uma galinha de aviário. Só não sei quando vai ser o meu momento da canja. A verdade é que o escrever tornou-se um suplicio, por isso o tenho feito tão pouco. A verdade, é que o dinheiro que os meus pais gastaram para eu poder ter um curso, foi mal empregue. A verdade é que tenho saudades de casa e de uma canja feita com galinhas de verdade. Não de histórias de galinhas de ovos de ouro em que a menina veio para a cidade e todos os seus sonhos se concretizaram.